ARTÍCULO ORIGINAL
Unidades de conservação e assentamentos rurais: contradições socioambientais na produção do mundo da sustentabilidade
Unidades de conservación y asentamientos rurales: contradicciones socioambientales en la producción del mundo de la sostenibilidad
Edvaldo Cesar Moretti I https://orcid.org/0000-0002-8065-839
Angelo Franco do Nascimento Ribeiro
II https://orcid.org/0000-0003-3244-3749
I Doutor em Geografia pela Universidade Estadual Paulista UNESP/Rio Claro. Professor titular da Universidade Federal da Grande Dourados, nos cursos de graduação e pós graduação em Geografia. Professor colaborador no Programa de Pós Graduação em Geografia da UNICAMP. Coordenador do Grupo de Pesquisa Território e Ambiente da UFGD. Correio: edvaldomoretti@ufgd.edu.br
II Doutor em Geografia pela Universidade Federal da Grande Dourados e Técnico do Laboratório de Geoprocessamento da mesma instituição. Tem pesquisas nos seguintes temas: Unidades de Conservação, Assentamentos rurais, Turismo, Geoprocessamento, Sensoriamento remoto, Arqueologia. Membro do Grupo de Pesquisa Território e Ambiente, certificado pelo CNPq. Correio: angeloribeiro@ufgd.edu.br
RESUMO
O texto trata dos conflitos presentes na ideia de sustentabilidade relacionada as Unidades de Conservação, que a principio aparecem como espaços públicos relacionados à conservação ambiental, são geralmente compreendidas como alternativa ao modelo de desenvolvimento centrado na propriedade privada da terra e uso dos elementos da natureza enquanto mercadoria, mas, de acordo com reflexões acumuladas em pesquisas realizadas no grupo de pesquisa Território e Ambiente na Universidade Federal da Grande Dourados, se efetiva nestas áreas determinados usos privados do patrimônio natural. O objetivo geral é análise da produção do espaço no processo de implantação de Unidades de Conservação e as contradições presentes na ideia de natureza associada a produção do "território da conservação" inseridos no "mundo da sustentabilidade" refletindo sobre as possibilidades de superação da fragmentação entre sustentabilidade ambiental e social apresentada pelas organizações sociais dos assentados nas áreas de entono de um Parque Nacional. A metodologia utilizada para desenvolvimento do estudo foi baseado na captação de dados bibliográficos e georreferenciados existente sobre a área bem como entrevista com os atores envolvidos na problemática e tabulação dos dados para análise. Como área de estudo foi definido o entorno do Parque Nacional da Serra da Bodoquena, especificamente os assentamentos rurais Canaã, Campinas, Guaicurus e Santa Lucia, localizados nos municípios de Bonito e Bodoquena no Mato Grosso do Sul.
Palavras chaves: natureza; sustentabilidade; assentamentos rurais; Unidades de Conservação.
RESUMEN
El artículo aborda los conflictos existentes, por un lado entre la idea de una sustentabilidad relacionada con las Áreas Protegidas, presentadas inicialmente como espacios públicos relacionados con la conservación ambiental, siendo entendidas como alternativa al modelo de desarrollo centrado en la propiedad privada de la tierra y por otro lado como el uso de los elementos de la naturaleza como mercancía, y el uso de dichas áreas para determinados usos privados del patrimonio natural, observado en la experiencia acumulada en las investigaciones realizadas por el grupo de investigación Territorio y Ambiente de la Universidad Federal da Grande Dourados. El objetivo general entonces es el análisis de la producción de espacios en el proceso de implantación de las Áreas Protegidas y las contradicciones presentes en esta idea ya mencionada de la naturaleza asociada a la producción de "territorios de conservación" insertados en un "mundo de sustentabilidad" reflexionando sobre las posibilidades de superar la división entre la sustentabilidad ambiental y social presentada por las organizaciones sociales de los asentados en las áreas del entono de un Parque Nacional. La metodología utilizada para el desarrollo del estudio estuvo basada en la recopilación de los datos bibliográficos y georreferenciados existentes sobre el área, así como entrevistas a los actores involucrados en esta problemática y la tabulación posterior de dichos datos. Como área de estudio fue definida el entorno del "Parque Nacional da Serra da Bodoquena", específicamente los asentamientos rurales Canaã, Campinas, Guaicurus y Santa Lucia, localizados en los municipios de Bonito y Bodoquena en el estado de Mato Grosso do Sul.
Palabras claves: naturaleza; sustentabilidad; asentamientos rurales; Áreas Protegidas.
ABSTRACT
The text deals with the conflicts present in the idea of sustainability related the Conservation Units, that at first appear as public spaces related to the environmental conservation, are generally understood as an alternative to the development model centered on private property of land and use of the elements of nature while merchandise, but according to reflections accumulated in research fulfilled in the research group Territory and Environment at the Federal University of Grande Dourados, put into effect in these areas certain uses of natural patrimony. The general objective is to analyze the production of space in the process of implementation of Conservation Units and the contradictions present in the idea of nature associated with the production of "territory of conservation" inserted in the "world of sustainability", reflecting on the possibilities of overcoming fragmentation between environmental and social sustainability presented by social organizations of the settled in the surrounding in the areas of a National Park. As a study area was defined the surroundings of the Serra da Bodoquena National Park, specifically the rural settlements of Canaã, Campinas, Guaicurus and Santa Lucia, located in the municipalities of Bonito and Bodoquena in Mato Grosso do Sul.
Keywords: Nature; Sustainability; Rural Settlements; Conservation Units.
INTRODUÇÃO
O texto procura realizar reflexão sobre a condição da apropriação privada da terra e a construção do chamado mundo da sustentabilidade, apresentado como proposta de hegemonia do mercado para superação da chamada crise ambiental. O olhar da analise é sobre o processo de implantação de ações destinadas a chamada sustentabilidade e a participação de pequenos produtores rurais empobrecidos no contexto de apropriação da natureza de forma privada por atividades reconhecidas e valorizadas como sustentáveis pelo mercado. Encaminha para a discussão crítica do fortalecimento da racionalidade do mundo moderno, atrelada a produção de mercadorias e de medições de desenvolvimento balizados pelo mercado.
Para concretizar a reflexão é destacada a situação vivenciada por assentados rurais no Estado do Mato Grosso do Sul impactados pela implantação do Parque Nacional da Serra da Bodoquena (PNSBd). No estado de Mato Grosso do Sul existem vinte e seis unidades de proteção integral ocupando 406.306,67 ha e cinquenta e sete unidades de uso sustentável com 3.533.041,86 ha. Essas unidades estão distribuídas em sete Monumentos Naturais, dezoito Parques, uma Reserva Biológica, vinte e seis Áreas de Proteção Ambiental, e trinta e umaReservas Particular do Patrimônio Natural - RPPN's, deste universo apenas um Parque Nacional totalmente dentro do estado.No caso de nossa pesquisa o olhar está centradono Parque Nacional da Serra da Bodoquena.
O Parque Nacional da Serra da Bodoquena (PNSBd) foi criado em setembro de 2000, com 77.021,58hectares, esta localizado no sudoeste do Mato Grosso do Sul, é o único Parque Nacional totalmente dentro do Estado. O PNSBd inclui áreas dos municípios de Bonito, Bodoquena, Jardim e de Porto Murtinho e cria o território de conservação na Serra da Bodoquena que abriga a maior extensão de florestas naturais do estado, tratando-se de um dos mais importantes remanescentes de florestas estacionais no Centro-Oeste, tendo ainda porções representativas de cerrado, campos inundáveis e remanescente de Mata Atlântica. (Como se observa na Figura 1).
A metodologia utilizada para desenvolvimento deste estudo foi baseado na captação de dados bibliográficos, como artigos, monografias, teses e jornais que tratavam do tema e documentos oficiais com informações da área estudada. Os dados georreferenciados foram importantes para determinar a localização e dimensão dos fenômenos analisados. Além disso, para entendimento da problemática sobre o ponto de vista humano foi realizado entrevistas com os atores envolvidos na problemática e tabulação dos dados para análise. (A metodologia detalhada pode ser obtida em RIBEIRO, A.F.N., 2017).
A produção de conflitos socioambientais.
A construção do discurso da crise ambiental foi baseada nos problemas causados pela expansão do modo de produzir mercadorias para todas as esferas da vida, entre elas os elementos da natureza. NEIL SMITH analisando o significado de natureza no capitalismo através de seus aspectos gerais considera a natureza como um objeto de produção.
Debaixo da ordenação do processo de acumulação o capitalismo como um modo de produção deve-se expandir continuamente para poder sobreviver. A reprodução da vida material fica totalmente dependente da produção do valor excedente. Para este fim, o capital se volta para a superfície do solo em busca dos recursos materiais; a natureza torna-se um meio universal de produção, de modo que ela não somente provê o sujeito, o objeto e os instrumentos de produção mas ela é em sua totalidade um acessório para o processo de produção. (SMITH, N. 1988, p. 87-88)
A insustentabilidade deste modelo (comprovado por inúmeros estudos, que não cabe aqui neste trabalho enumerar) gerou a necessidade de produzir formas alternativas de apropriação, muitas vezes as formas alternativas estão atreladas ao modelo hegemônico de controle da produção vinculado a produção privada. Uma das estratégias utilizadas para conter o processo de produção destrutiva é a transformação de algumas áreas, eleitas possuidoras de relevantes características consideradas naturais, em Unidade de Conservação UC.
A estratégia de implantar Unidades de Conservação tem como fundamento a construção histórica da natureza, nos limites deste trabalho sinteticamente pode ser considerado que a partir do século XVI passou a ser dominante no ocidente a noção de "natureza" vinculada a expansão da burguesia e nas ideias do racionalismo.
A natureza entendida como algo selvagem que será domesticada pelo homem, é vista como obstáculo e, ao mesmo tempo, como recurso que o conhecimento absoluto e infinito, baseado na razão, deverá superar e transformar em meio para se atingir um fim, a produção de mercadorias.
Avançando na análise da produção da natureza inserida no processo de transformação do valor de uso para o valor de troca; que é também a transformação da natureza apropriada para a natureza produzida, SMITH (1988) faz as seguintes considerações:
Com o desenvolvimento do capitalismo em escala mundial e a generalização das relações de trabalho assalariado, a relação com a natureza é antes de mais nada uma relação de valor de troca. Os vestígios fundamentais do valor de uso da natureza permanece certamente, mas com o avanço e o desenvolvimento das forças produtivas, necessidades específicas podem ser satisfeitas pelo aumento do valor de uso e específicas mercadorias podem ser produzidas com um crescimento da matéria-prima. A transformação para uma relação de valor de troca é, no entanto, conseguida na prática pelo capitalismo. A produção capitalista (e a apropriação da natureza) é acompanhada não pela satisfação das necessidades em geral, mas pela satisfação de uma necessidade em particular: lucro. Na busca do lucro, o capital corre o mundo inteiro. Ele coloca uma etiqueta de preço em qualquer coisa que ele vê, e a partir desta etiqueta de preço é que se determina o destino da natureza. ( p. 87-88)
Nesse contexto geral de produção da natureza e de seus significados, a opção da implantação de Unidades de Conservação tem gerado conflitos com relação ao uso da terra e sua posse. Especificamente com a implantação do Parque Nacional da Bodoquena os conflitos são explicitados e permitem refletir sobre o modelo adotado e suas mazelas.
Nunes (2003), afirma que a fragmentação do espaço em áreas de conservação, separando o homem da natureza, segregando os espaços é consequência direta do modelo de políticas públicas que foram implantadas no Brasil.
(...) a política ambiental brasileira reproduz, em linhas gerais, a política brasileira com sua estrutura administrativa muitas vezes ineficiente; uso da força na proteção do território ou de interesses econômicos e políticos; conflitos de atribuições; falta de planos de ação bem definidos com um planejamento integrado; criação de leis e normas puramente casuísticas; deficiente na criação de mecanismos participativos da sociedade e de comunicação, entre outros. Possivelmente a raiz dessa desestruturação esteja na própria história da formação do Estado brasileiro onde os mecanismos de gestão do seu território foram determinantes das nossas ações futuras (Nunes, 2003, p.35).
A política ambiental brasileira é historicamente produzida por indivíduos ligados a setores que não participam dos anseios da parcela empobrecida das populações residentes nestas áreas, com isso estes territórios criados para proteção de elementos naturais são efetivados sem dialogo com essas populações que são marginalizadas do processo de decisão.
Especificamente em um dos casos analisados nesse artigo, o Assentamento Canaã no Mato Grosso do Sul, ocorre a superposição de áreas de conservação ambiental sobre territórios produzidos por homens e mulheres historicamente vinculados ao trabalho na terra, como é o caso desse assentamento situados no entorno no Parque Nacional da Serra da Bodoquena, que teve suas áreas comprometidas para atividades de subsistência em função da implantação do Parque que ocorreu quando o assentamento já estava instalado e com os lotes destinados aos assentados.
Relacionado à sobreposição dos territórios das comunidades locais pelas áreas de unidades de conservação, nota-se que existem conflitos persistentes, onde a legislação se impõe, muitas vezes, através da força, impedindo que a parcela empobrecida da sociedade desenvolva qualquer tipo de atividade no local onde se situa a unidade de conservação.
A pratica de ignorar os direitos tradicionais da população local para criar novas unidades de conservação tem sido denominada de "ecolonialismo" devido a sua semelhança com os abusos históricos dos direitos dos nativos praticados por forças colonialistas de épocas passadas (Nunes, 2003).
Esse modelo de implantação de unidade de conservação implica no uso das áreas, tanto pela população local, que na maioria dos casos esta compreendida entre a população mais tradicional, e entre a classe latifundiária, que almeja o crescimento e desenvolvimento de sua área de expansão, seja com a finalidade de cultivo ou de especulação, o que gera inúmeros conflitos de terras e uso dessas.
O lugar da pesquisa, o estado do Mato Grosso do Sul, caracteriza-se por uma economia baseada na produção de commodities agrícolas, com grande destaque para as carnes bovina, suína, aves e grãos soja e milho e, mais recentemente, a produção de açúcar e etanol tem tido destaque, com a implantação de usinas distribuídas pelo território sul-mato-grossense. O poder local está associado a este aparato econômico, ocorrendo o domínio da política pelos grandes proprietários de terras e da estrutura produtiva de commodities.
Esta característica da produção territorial local impossibilitou a implantação de Unidades de Conservação em Mato Grosso do Sul até o ano de 2000, quando foi implantado o Parque Nacional da Serra da Bodoquena (PNSBd) com o objetivo de conservar parcelas do Planalto da Bodoquena, local de nascentes de rios que abastecem a planície pantaneira, que conta com presença de resquícios de Mata Atlântica e Cerrados ainda preservados uma das justificativas para implantação do Parque.
A implantação do Parque foi efetivada após embates com a classe proprietária de terras, que atuaram nas audiências públicas no sentido de impedir a consolidação da Unidade de Conservação como do tipo Proteção Integral (BATARCE, 2004). O Decreto S/N de 21 de setembro de 2000 concretizou a criação do Parque Nacional Serra da Bodoquena. Contando com audiências públicas para ouvir a comunidade local, em cada município envolvido, Organizações não Governamentais (ONGs), proprietário de terras-latifundiário, sindicatos rurais, governos federal, estadual e municipal.
Mesmo passados 20 anos da criação do Parque ainda é possível encontrar diversos problemas na unidade e entorno. Considerava-se entorno a faixa de 10 quilômetros denominada Zona de Amortecimento, nesta encontravam-se 4 assentamentos de reforma agrária: Santa Lúcia, Guaicurus, Campina e Canaã, este último teve 34 lotes sobrepostos pela delimitação do parque, mas esta questão legal foi alterada e atualmente esta faixa de uso restrito foi alterada conforme a Figura 1 e apenas o Guaicurus e Canaã permanecem dentro da Zona de Amortecimento e nestes assentamentos é preciso adaptar suas práticas de produção para continuar as atividades em seus lotes. (Figura 1)
Os quatro assentamentos possuem em comum o fato de estarem localizados na área de entorno do Parque Nacional da Bodoquena, criado depois que os assentamentos já existiam. Mas, apresentam diferenças fundamentais entre si conforme apontamos em trabalhos publicados. (REITMAN, RIBEIRO e MORETTI, 2016)
A principal atividade desenvolvida nos assentamentos é a pecuária, principalmente o gado bovino de corte. Existe a criação de carneiros no Canaã e no Campina, apesar da produção ser pequena é significativa para os assentados, em função dos produtos gerados.
O Santa Lúcia se mostra como o mais estruturado economicamente, pois a atuação da ONG Neotrópica Brasil com os projetos "frutificando", parceria com a Embrapa, e "Pé da Serra", em conjunto com o SENAC, treinaram e capacitaram os assentados para a produção de compotas, estas produzidas com as frutas do próprio pomar e comercializados na cidade de Bonito em lojas destinadas aos turistas. A organização política deste assentamento, as cooperativas das mulheres com as compotas e doces e a dos homens com a rapadura são determinantes para o sucesso desses projetos, as características do solo (mais fértil) e a localização (26 km de Bonito) contribuem para que as ações relacionadas à produção baseada em matérias primas presentes no assentamento tenham êxito.
A relação do assentamento Santa Lúcia com o Parque Nacional da Bodoquena ocorre na comercialização dos produtos através da "indicação de origem", indicando que o produto foi produzido no Assentamento e sua localização no entorno do Parque Nacional. Não existem ações conjuntas entre assentamento e Parque Nacional, as analises indicam que ocorre distanciamento entre os assentados e o Parque Nacional no sentido de promover aproximações para valorização da área de conservação.
Em contraste, no assentamento Guaicurus o mesmo projeto "Pé da Serra" foi realizado, mas não atingiu o os objetivos propostos. A desestruturação da organização social dos assentados, as características físicas (solo rochoso), a pouca infraestrutura não possui rede de distribuição d'água encanada, em época de seca falta água, sendo utilizado o poço para a coleta desta o descaso por parte do poder público, revelam as causas da estagnação deste assentamento, que está a 76 km de Bonito. No assentamento ocorreu procedimento comum no Brasil, o desmatamento para exploração da madeira e o plantio de pastagens para criação de gado. Esse modelo de produção, as dificuldades de comercialização, e a ausência de infraestrutura no assentamento provocou o abandono das terras por 60% dos assentados, segundo a presidente da Associação de Mulheres do Assentamento Guaicurus, em levantamento junto à comunidade.
Iremos detalhar neste trabalho a produção do Assentamento Canaã, que tem inicio com a ocupação da área na década de 1980. De acordo com relatos de assentados do Canaã, os sem terra ficaram sabendo que esta área não possuíam proprietários. Assim, organizaram um grupo de 80 famílias e ocuparam a área, demarcando suas posses através de "picadas" em meio à mata fechada. Após vários embates, em 1984 começou a ser emitida a permissão de uso da terra. O processo foi concluído somente em 1985. O assentamento Canaã foi consolidado entre a Serra da Bodoquena, cravado em meio aos morros e vales, sobre as rochas calcárias, com solos rasos e uma área altamente irregular.
No ano de 2000, foi criado o Parque Nacional da Serra da Bodoquena, Unidade de Conservação de Proteção Integral que sobrepôs 34 lotes do assentamento Canaã, alguns se localizavam parcialmente e outros completamente dentro do Parque (Figura 2).
A divisão do assentamento feita por "linhas" é um aspecto importante deste assentamento, promovendo diferenciações entre os assentados. A Linha do Salobra, é a mais valorizada economicamente, por abrigar o Rio Salobra de água cristalina e, também, a cachoeira Boca da Onça, que mesmo sendo fora do assentamento está no limite e tem-se uma visão muito atraente do lado do Canaã; a Linha do Córrego Azul que abriga diversas belezas naturais, como o córrego de mesmo nome; a Linha do Córrego Seco onde fica a sede do assentamento e a escola; e, por fim, a Linha do Palhadão que leva este nome por passar pela Serra do Palhadão. Na Linha Palhadão, temos as situações mais difíceis e, também, a sobreposição do Parque. No final desta linha, alguns lotes não contam com estradas, muito menos com energia elétrica, porque na época da construção das redes de distribuição não havia estradas para chegar aos lotes e até o momento não existe. No Quadro 1, imagens das características encontradas em cada uma das linhas.
A principal atividade econômica no Canaã é a criação de gado de corte e leite. Além disso, a maioria dos assentados praticam atividades fora do assentamento com o objetivo de complementar a renda, grande parte dos assentados residem na cidade de Bodoquena, mas se desloca diariamente para seus lotes para exercer suas funções, caracterizando o que Menegat (2009) chama de lote de trabalho para muitos. Além deste fato, lotes foram vendidos ou abandonados por falta de condições de produção.
A intensa declividade e o elevado número de afloramentos rochosos dificultam algumas formas de cultivo da terra. Portanto, a única alternativa para a maioria dos assentados é a pastagem para criação de gado e isso já causa alguns transtornos, pois observamos erosões em alguns pontos. Muitas áreas do assentamento ultrapassam os 45º de declividade e este fato pode ser agravado ainda mais se continuar o desmatamento da vegetação natural.A forma de uso do solo no Canaã aliada ao desmatamento e altas declividades provoca danos em períodos chuvosos, com deslizamentos, destruição de áreas de produção, de estradas, entre outros.
Além da pecuária, surgem na Linha do Salobra alguns proprietários de lotes motivados pela atividade turística. Alguns com muita estrutura e outros apenas com trilhas nos lotes. Nesta área muitos lotes forma comercializados para empresários e igrejas interessados na implantação de atividades relacionadas ao turismo e ao lazer, vinculada ao Rio Salobra e ao Parque Nacional.
Entre os anos de 2016 e 2019 a Fundação Neotrópica do Brasil juntamente com parceiros, incluindo o ICMBio desenvolveram o projeto "Capacitação dos moradores do Assentamento Canaã, no entorno do Parque Nacional da Serra da Bodoquena, município de Bodoquena MS", este projeto tinha como metas, a capacitação da comunidade para o turismo de base comunitária, implementação de método alternativo de produção, ou sistema agroflorestal e educação ambiental. Este projeto teve um importante papel na conscientização dos moradores para importância que eles desempenham na manutenção do ambiente e como tirar seu sustento desta área sem a necessidade de abertura de novas áreas.
Historicamente a ocupação do Mato Grosso do Sul teve relação com a expansão da fronteira agrícola e abertura de novas áreas para agricultura. O cenário se delineou para criação de gado, tanto que atualmente figura entre os maiores rebanhos bovino do Brasil em números de cabeças de gado, com aproximadamente 20.379.721 cabeças. Da mesma forma a produção de soja, milho e cana-de-açúcar tem colocado o estado em destaque no cenário nacional e internacional. Levando em consideração todas estas atividades citadas anteriormente. Os problemas ambientais e sociais no campo tendem a se agravar, principalmente, com relação à pecuária como a atividade econômica desenvolvida em Mato Grosso do Sul, que requer grandes áreas para criação de animais.
A abertura de novas áreas para agricultura e pecuária tem devastado vários quilômetros quadrados de cerrado e comprometido vários rios e nascentes com a poluição por agrotóxicos e o assoreamento de rios com a formação de bebedouros para gado. Aliada aos problemas ambientais, temos a expropriação de várias famílias do campo por conta desse processo de abertura de novas áreas para agropecuária. Este problema tem causado o acúmulo de pessoas nas periferias das cidades e, sobretudo, aquelas que não conseguem sobrevivência na cidade voltam às margens de rodovias nos acampamentos de sem terra em busca de um novo pedaço de terra.
O histórico de formação do Assentamento Canaã e do Parque Nacional se confundem com o processo de constituição do campo brasileiro, marcado pela exclusão e produção de miséria para milhões de trabalhadores.
O Canaã é criado para resolver um problema agrário de diversas pessoas que não possuem terra para plantar, por outro lado, ocupa-se uma área preservada de 4.360 hectares que aproximadamente três décadas mais tarde até mesmo os assentados entendem que a área do Canaã deveria ser terra de preservação. Por sua vez, os assentados não participam do processo de decisão sobre como constituir o território da conservação, como produzir, ou mesmo como sobreviver no Canaã considerando a dinâmica dos elementos naturais e os limites impostos pela legislação ambiental. Algumas medidas foram tomadas em outros assentamentos do entorno do Parque, como no Santa Lúcia, mas são ações isoladas e fragmentadas, que não adentem as demandas dos assentamentos e da proposta de conservação indicada pela criação do Parque Nacional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, dois pontos são marcantes no decorrer do trabalho: de um lado, o Assentamento Canaã do início da década de 1980, implantado em uma "reserva florestal", pois na época a área era coberta por mata; de outro lado, o Parque Nacional da Serra da Bodoquena criado no início dos anos 2000 carregado de contradição e disputas.
Implantado em setembro de 2000, o Parque Nacional da Serra da Bodoquena tem em seu histórico de consolidação um profundo clima de conflito entre ONGs, políticos, fazendeiros e assentados. A criação do Parque coloca novamente a discussão do modelo de conservação pautada em Parques, pois a delimitação da Unidade de Conservação sobrepôs 34 lotes do assentamento Canaã em seus domínios, agravando ainda mais a situação destes colonos.
Como parte do processo de implantação a equipe do ICMBio de Bonito, responsável pelo PNSBd tentava há anos fazer a abertura de áreas para visitação pública, porém os entraves burocráticos e financeiros impediam esta abertura. De acordo com a administração do Parque esta abertura só foi possível por parcerias, locais, estaduais e nacionais para viabilizar o processo de visitação.
Em janeiro de 2021 foram abertas 2 áreas para visitação pública, que são as "Trilhas do Sumidouro-Ressurgência do rio Perdido" e a "Trilha Rancho Branco". As atividades relacionadas a visitação nestes pontos devem obrigatoriamente ser acompanhadas por um dos 182 condutores cadastrados durante o processo de formação que aconteceu no ano de 2020. Destes condutores cadastrados alguns são moradores do Assentamento Canaã e a Trilha Rancho Branco fica próxima ao assentamento e, como processo de inserção destas pessoas por meio da formação e do projeto já mencionado da Fundação Neotrópica, eles fariam o acompanhamento das pessoas na visita desta área.
A abertura para visitação de uma UC é sempre carregado de contradições do ponto de vista do uso desta área, pois entende-se que um bem público está sendo "privatizado" aos olhos dos seus usuários que são cerceados ao uso de algo dado, porém a legislação impõe este limite, espera-se que com o processo de abertura do Parque, mesmo que muito tímida, avance o processo de regularização fundiária que ainda é precário.
A demora na resolução dos conflitos fundiários e a superposição da área do Parque no assentamento rural provocam desde indignação e revolta nos assentados até um sentimento de impotência para os ambientalistas com a não implantação plena do Parque Nacional. Destes lotes que permaneceram na área do PNSBd apenas 5 foram regularizados, seja por aquisição por parte do ICMBio, ou doação do proprietário.
Desta forma, a implantação do território da conservação feita sem participação efetiva da comunidade dos pequenos produtores rurais diretamente afetados em sua vida cotidiana e em sua territorialidade, promove o afastamento de parcelas importantes da sociedade do processo de luta pela melhoria das condições ambientais.
A fragmentação entre sociedade e natureza é concretizada na separação entre a ideia de sustentabilidade ambiental e sustentabilidade social. A defesa do ambiente se contrapõe à defesa pela erradicação da miséria, pelo direito dos trabalhadores rurais à terra. Este processo de fragmentação promove conflitos que tem como central o território e a produção do território está em disputa. Esta disputa territorial se apresenta como item fundamental no mundo moderno, com a valorização ambiental e com a aplicação de estratégias conservacionistas que excluem as pessoas do processo de constituição das práticas conservacionistas.
No seio dos movimentos da sociedade e dos estudos acadêmicos, que procuram superar a fragmentação sociedade-natureza, nasce a proposta que encaminha para a reflexão sobre a constituição de territórios socialmente sustentáveis, com a sustentabilidade da vida e, consequentemente, de condições ambientais saudáveis para a vida humana. O estudo deste processo no Planalto da Bodoquena é exemplar, demonstrando o distanciamento da sociedade local na constituição da Unidade de Conservação provocado pela política conservacionista baseada na produção de territórios de conservação e a transformação das pessoas em marginais ao processo.
O desafio colocado para a sociedade é a superação da dicotomia sociedade-natureza e a definição de estratégias para a produção de territórios socioambientalmente sustentáveis. A centralidade deve ser a produção da vida e sua qualificação.
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Fecha de recepción: 02 de febrero de 2021
Fecha de aceptación: 10 de marzo de 2021
Edvaldo Cesar Moretti. Universidade Federal da Grande Dourados. Correio: edvaldomoretti@ufgd.edu.br
Conflicto de intereses:
Los autores declaran no tener conflictos de intereses.
Contribución de los autores:
Los autores han participado en la redacción del trabajo y análisis de los documentos.
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